Maria que vai com as Outras

Maria que vai com as Outras
Maria que vai com as Outras
As petingas têm sabor a casa. Têm sabor a saudade, a avós, a quintas, pomares, dias de sol, a mesas de tábuas e bancos corridos debaixo da tangerineira, a gincanas, amigos, limonadas, carrinhos de mão, tanques de lavar a roupa com água aquecida pelo sol, terra molhada, pés descalços, fotografias em sépia, cabelo ao vento, um «vem para a mesa!» gritado da porta da cozinha para a rua, regadores, brinquedos de pau, gargalhadas inocentes, baloiço de corda e tanta inocência! A infância resumida num flash de pouco mais de uma dúzia de lembranças, de um tempo em que tudo era simples, belo e descomprometido.

Dada a poucas pretensões de capa de revista ou a mundos de adultos, a petinga brilha no alto da sua pequenez em tamanho e na sua enormidade em simplicidade e gosto, fazendo saber que nem tudo é negativo quando se é desprovido de tamanho. Numa concentração de sabor de pele firme, com aspeto brilhante e odor característico, olhos limpos, brilhantes e salientes, a petinga atesta que qualquer pretexto é bom para uma viagem gastronómica ao passado, fazendo de cada cozinha uma tasca caseira onde apetece ir e estar. E ficar. A petinga em conserva da Comur tem tudo isso; tem o peixe, tem o azeite virgem extra, tem o sal e tem toda a nostalgia numa lata mágica que desvenda, ao abrir, as memórias de cada um de nós.

No universo da Comur - não havendo Marias que vão com as outras por não terem opinião, porque cada conserva é senhora do seu nariz e sabe bem de onde vem e para onde quer ir, poder-se-ia pensar que, pelo seu tamanho e simplicidade, a petinga encarnaria esta personagem desprovida de caráter. Mas, tal como o janquinzinho repudiaria esta personificação, esta Maria vai com as outras porque quer ir, porque sabe que se revelará ao mundo, exultante e humilde, quer se apresente numa travessa de porcelana com finos gomos de limão e ervas, ou num tacho de barro farto, encardido e quinado pelo uso.

Revisitar receitas antigas, dando-lhes um twist pessoal para surpreender o paladar e ainda assim, avivar memórias, nossas e dos que nos rodeiam, é algo que gostamos sempre de fazer porque teremos sempre uma história para contar. E as petingas dão-nos essa liberdade. São, aliás, o mote: no forno, em molho de escabeche, albardadas em polme e regadas com sumo de limão, fritas e estaladiças com açorda ou arroz de grelos a acompanhar, em caldeirada, ou simplesmente num despretensioso molho de tomate e cebolada, as petingas em azeite da Comur são versáteis e prestam-se a todo o tipo de criações onde a sua imaginação o levar. E é por isso que as petingas da Comur têm sabor a casa. Aquela casa. Marias que vão bem com as memórias de infância. As suas. As nossas.
Mar 2020 | Portugal 2020
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