Quando a Fome se junta à Vontade de Ser

Quando a Fome se junta à Vontade de Ser
Quando a Fome se junta à Vontade de Ser
Quando a Fome se junta à Vontade de Ser
Era profunda e generalizada, a pobreza. Tirando uma escassa burguesia abastada, o clero e a nobreza, o povo transpirava para sobreviver. A fome era uma inevitabilidade da vida nos dias que iam passando devagar. Perante a necessidade e os parcos recursos de um povo regido por uma religião que remetia o desperdício para o pecado – e que efetivamente, o era! -, muitos dos mais icónicos símbolos da gastronomia portuguesa de hoje são fruto de situações limite que a criatividade pôs à prova.

Das gemas sobrantes, cujas claras serviam para a lavagem da roupa nos conventos, as freiras criaram o afamado pastel de nata, uma das mais populares especialidades da doçaria portuguesa de sempre.
Da epopeia dos descobrimentos portugueses, na qual os navegadores precisavam de abastecer abundantemente os barcos com mantimentos, em particular carnes que eram salgadas em grandes arcas de madeira para transportar, a população local era sacrificada, ficando reduzida às miudezas e às tripas. E foi com elas que, para saciar a fome, os heróis em terra inventaram as «Tripas à moda do Porto», hoje uma iguaria típica da cidade.

Das aragens do Alentejo, as míticas «Migas Alentejanas» são uma das especialidades mais marcantes da identidade cultural alentejana, fruto da necessidade de dar uso às sobras de pão duro, frito com gordura de porco para lhe dar sabor, para que nada se estragasse.

É consensual que, dentro do capítulo das maravilhas gastronómicas portuguesas, existe um receituário infindável de exemplos que poderiam ser, só por si, uma categoria. Ninguém os inventou e inventaram-nos todos os portugueses que, ao longo dos anos, provaram que já não é só a necessidade que aguça o engenho, mas antes a vontade de ser, a paixão que genuinamente colocamos nas coisas para as tornar majestosas.  As nossas raízes ensinaram-nos que é preciso merecer. É preciso ser grande em humildade para ser grande em sonhos. E, no campo da cozinha, por mais que a evidência faça parecer o contrário, a necessidade facilitou-nos a vida, colocando-nos à mercê de experiências que nos trouxeram ao patamar onde estamos hoje.

Na linha do litoral, o mar teria também muitas histórias para contar. Sob o mesmo sol dos conventos, do Porto, do Alentejo ou de muitas outras paragens, os barcos pesqueiros traziam para o tacho, cozinhado a bordo, o peixe que não se venderia na praia.  Num fogão improvisado e com cheiro a maresia, a caldeirada começava vagarosamente a ganhar forma: corvina, enguias, carapau, lulas, cavala… e das miudezas se fazia ouro! E são esses tesouros do mar que com a facilidade de abrir uma lata de conservas, pode igualmente ter à sua mesa, pela mão experiente da Comur, numa verdadeira festa do mar para o palato.

E a caldeirada surge assim, também, como uma extensão da arte da pesca: é uma arte gastronómica e um requinte da cozinha tradicional portuguesa que só existe porque a necessidade assim o ditou. Felizmente. 
Mar 2020 | Portugal 2020
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