O Luxo das Vindimas

O Luxo das Vindimas
O sol amadureceu as uvas, agora com a cor, peso e acidez ideais para que o fim do Verão pisque o olho ao outono, a convidar para a vindima. 

Longe do stress e da correria da cidade, os fins de semana estão agora reservados para uma viagem às memórias. E não podia haver memórias outonais mais autênticas e felizes que as vindimas. 
Os dias começavam ainda de madrugada, empoleirados no trator do avô que o conduzia com o orgulho de quem hoje iria ao volante de um Bentley, a olhar para os netos embevecido, com a perceção clara de que, para eles, era um super-herói. E ali iam, felizes, com o vento da madrugada a bater na cara e a construir com o avô aquilo que não sabiam que viriam a ser das suas melhores memórias de infância. 

Hoje, numa carrinha com tração às quatro rodas que o avô, agora de segunda geração, conduz até à vinha, empoleiram-se já os netos da segunda geração também, na caixa aberta, para quem esta aventura é uma pequena loucura que só o avô podia realizar, embevecido, também ele, por dar aos netos a emoção e a construir-lhes as memórias de que um dia se lembrarão com saudade. No meio das gargalhadas dos miúdos e dos apelos para passar mais depressa nas poças de água, os outrora netos e agora pais, abrem o vidro e fecham os olhos para sentir o vento na cara e a nostalgia do passado. Na sua cabeça, vão no trator do avô.

«Os pés das uvas estão finalmente murchos e a pele dos bagos começa a contrair; estão no ponto.» Com as galochas na lama, por entre alas de cepas, o avô tenta passar aos netos aquilo que se lembra que o seu avô lhe dizia. E de tesoura na mão, vão cortando os cachos que pousam com cuidado nos poceiros, transportados ao ombro pelos homens para a dorna, quando estão cheios. Era assim, no tempo do avô e é assim hoje, neste que é o tempo do avô e dos netos da segunda geração.

Um almoço prolongado em ambiente de festa, ali mesmo, no meio da vinha, era a recompensa merecida depois de uma longa manhã a vindimar. Em cestas de vime que traziam à cabeça, as mulheres serviam o almoço: uma sopa farta de feijão, batata e couve, a que chamavam misturadas, e sardinhas assadas a acompanhar. 

E a vontade de repetir aquele luxo repete-se agora: almoço e cenário. A sopa – receita reproduzida do receituário da avó e sardinhas assadas na brasa, preparadas pelas mulheres da Murtosa, experientes nessa ciência exímia que é saber assar sardinhas com precisão, para que fiquem em lata exatamente com o mesmo sabor das memórias. Assim são.

Fecham-se novamente os olhos e ali no meio da vinha sente-se o sabor do passado naquela sopa e naquelas sardinhas. Nada poderia ser mais prazeroso, num momento tão carregado de história. Abrem-se os olhos apenas para confirmar que a cumplicidade entre o avô e os netos se vinca ali também, num momento lacrado de amor, para sempre especial.

O avô da primeira geração teria, seguramente, ido para a vindima empoleirado no carro de bois do seu avô, com o vento da madrugada a bater-lhe na cara. A ouvir que o corte se faz quando os pés das uvas estão finalmente murchos e a pele dos bagos começa a contrair. Com os sapatos na lama e a deliciar-se com a sopa de misturadas e as sardinhas assadas.
Mar 2020 | Portugal 2020
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