Lota: Marés Vivas em Terra

Lota: Marés Vivas em Terra
Lota: Marés Vivas em Terra
Ainda o dia não raiou e já a lota tem uma vida agitada.

Os barcos de pesca artesanal e os arrastões descarregam centenas de caixas com peixe fresco acabado de pescar, ainda noite, para entrar, pouco depois, na roda viva do leilão. Robalo, sardinha, peixe-espada, polvo, carapau, lula, corvina… vão apresentar-se em breve num passarela de luxo oferecida pelo mar. 

Os primeiros raios de sol, ou às vezes apenas a ténue luz que adivinha um dia cinzento e frio, fazem chegar à lota os compradores, ávidos do melhor peixe. Quem já assistiu a essa azáfama sabe que as muitas horas no mar motivam os que passam muitas horas em terra a chegar à lota bem cedo. Do luxo das antiguidades, arte, colecionismo, livros e objetos decorativos vendidos em leilão, ao luxo de arrematar um peixe absolutamente fresco, de olhos e pele brilhantes vendido na lota, não há muitas diferenças. Ambos geram um imenso prazer, porque definir com precisão o valor de um bem de luxo não se restringe a cálculos financeiros; há, numa lota de peixe, muita matemática emocional.

Aqui, o leilão faz-se ao contrário: o leiloeiro começa por dar o preço máximo, e os compradores vão arriscando os seus lances, de comando à distância na mão, por montantes inferiores, num jogo de nervos causado pela possibilidade de perder o lote para um comprador menos ambicioso. Noutros tempos, e quase impercetível aos menos habituados nesta lide, mas numa linguagem corrente para quem a vivia diariamente, o leiloeiro esgrimia lotes de peixe atribuindo a venda a quem se acercasse com o preço mais próximo do desejado, gritando «chui!» com determinação para arrematar o lote.

Hoje, a venda faz-se com recurso à tecnologia com écrans que referenciam o lote, a embarcação, o nome do pescado, o peso e o número de caixas, ou através de aplicações que possibilitam a venda digital do pescado ainda em alto-mar e que permitem uma rastreabilidade sobre a origem e proveniência do peixe. Esta evolução tirou-lhe parte do encanto, mas manteve-lhe a agitação e ofereceu-lhe rigor. Ainda assim, as vozes que se sobrepõem, o desfile das caixas de peixe e o destino sonhado da grelha, do forno ou do tacho, são um luxo que mantém viva a azáfama. Fresco ou igualmente saboroso em conservas da Comur, o peixe sai da lota com fado marcado.

Já o dia vai longo e a lota termina para preparar a próxima sessão. Aqui não há descanso; são as marés vivas a acontecer. 
Mar 2020 | Portugal 2020
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